Na sexta-feira 11 de agosto, a imagem de um homem careca, de óculos, trajando camisa social e gravata, dormindo ao relento nas ruas do Rio de Janeiro, com apenas uma sacola preta com seus pertences servindo de travesseiro, foi dispersa por diversos países como símbolo da crise econômica brasileira. O personagem até então desconhecido ganhou nome e história contada pelo jornal O Globo. Desempregado desde 2016, Vilmar Mendonça, de 58 anos, ex-gerente de RH de grandes empresas, passava o dia no aeroporto de Santos Dumont e dormia na rua. Havia seis meses, contava com as doações da Cruz Vermelha para se alimentar.
Luiz Alberto Sampaio, presidente da filial fluminense da Cruz Vermelha, aproveitou para divulgar o projeto Noites Solidárias e pedir doações. “O Vilmar é um exemplo da consequência da crise que vive nosso país”, disse. “O número de pessoas em situação de rua aumentou e precisamos estar preparados para auxiliá-las. Mas nossos projetos só podem ser desenvolvidos por meio de doações.” Em 23 de agosto, quando Vilmar Mendonça já havia conseguido um emprego, Luiz Alberto recebia uma batida da Polícia Civil e do Ministério Público do Distrito Federal em casa. Ele e sua mulher, Rosely Sampaio, então presidente nacional da Cruz Vermelha, foram conduzidos coercitivamente para depor, suspeitos de terem participado de uma fraude.
O casal é suspeito de saber do desvio de R$ 9,7 milhões de dinheiro público em um contrato firmado entre a filial da Cruz Vermelha de Petrópolis, Rio de Janeiro, com o governo do Distrito Federal. Parte dos R$ 60 milhões previstos em contrato para administrar duas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) foi desviada para 77 pessoas e empresas que nada tinham a ver com a história. Os investigadores descobriram que Luiz Alberto atuou na Cruz Vermelha em defesa do contrato, quando outro dirigente vetou o acerto. Há a suspeita de que ele acobertou o responsável pela irregularidade, Douglas Oliveira.
Decisão sigilosa obtida por ÉPOCA revela que, no dia 24 de novembro, a juíza Ana Claudia Loiola de Morais Mendes, da 1ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, proibiu o casal Luiz Alberto e Rosely de botar os pés na sede da entidade. Determinou ainda a suspensão da função de Luiz Alberto, que ainda preside a filial no Rio. Rosely deixou a presidência no mês passado, depois da eleição de seu sucessor. Para a juíza, o casal deve ser impedido de continuar “praticando condutas prejudiciais a bens juridicamente relevantes ou de se valerem da estrutura da Cruz Vermelha para manipular ou desviar verbas públicas de sua finalidade”. Luiz Alberto virou réu pelo crime de peculato. Douglas Oliveira, que estava oficialmente afastado, mas continuava trabalhando como subordinado de Luiz Alberto, foi preso em junho. O despacho da juíza foi encaminhado ao Comitê Internacional, em Brasília, para que os fatos sejam comunicados à sede em Genebra, na Suíça.
É a primeira vez que membros da cúpula da Cruz Vermelha são processados criminalmente no Brasil. Fundada em 1908, a Cruz Vermelha Brasileira (CVB) foi criada para replicar no Brasil o ideário da organização filantrópica que surgiu na Suíça em 1863, com o intuito de prestar socorro médico voluntário a vítimas de guerras e desastres naturais. Uma auditoria internacional de 2014 revelou suspeitas de desvios de R$ 25 milhões da organização no Brasil entre 2010 e 2012. Os valores não são padrão Lava Jato, mas aviltantes por sua natureza. A maior parte do dinheiro foi desviada de doações feitas por cidadãos às vítimas de conflitos e da seca na Somália, do tsunami no Japão e das enchentes na Região Serrana do Rio. Segundo nota divulgada pela Cruz Vermelha na ocasião, os desvios se concentraram nas filiais do Maranhão e do Ceará.
A operação feita em 23 de agosto rendeu mais aos investigadores. Ao ver a polícia na sede, uma funcionária decidiu colaborar com a investigação. Ela entregou ao Ministério Público do Rio cópias de contratos de um tal Instituto Nacional da Cruz Vermelha Brasileira (INCVB). Criado em 2014 na gestão de Rosely, mulher de Luiz Alberto, o instituto deveria captar dinheiro para a entidade. Segundo a funcionária, vários contratos foram fechados sem pareceres jurídicos ou prestações de contas. O MP suspeita que o instituto seja uma forma de os dirigentes movimentarem dinheiro a salvo de processos trabalhistas. Responsável pelo caso da fraude no contrato, o promotor Luis Henrique Ishihara avisou à Justiça que vai instaurar outra investigação criminal, especificamente sobre a questão do instituto.
A Cruz Vermelha Brasileira diz que a nova diretoria está realizando auditorias nos contratos antigos. A filial do Rio informou que ainda não foi notificada da decisão judicial. A defesa de Luiz Alberto e Rosely Sampaio disse que ainda não tomou conhecimento da decisão. O advogado de Douglas Oliveira disse que só vai se manifestar quando tiver acesso à decisão.