O engenheiro Antonio Valente ostenta, placa na mão e um franco sorriso, que é “a cara da riqueza”. Na foto que postou no Instagram, no aniversário de uma amiga, Valente está satisfeito com sua prosperidade. Por trás de seu regozijo está um contracheque bem fornido por benefícios, adicionais de periculosidade típicos de seu setor, horas extras... Valente vive numa ilha da fantasia onde a regra são os supersalários – ilha que está na dimensão das empresas estatais, é claro. Esse mundo colorido fica a 20 quilômetros de Boa Vista, encravado em meio ao lavrado, vegetação de savana típica de Roraima. Chama-se Subestação Boa Vista, estrutura da Eletronorte, subsidiária da Eletrobras, que recebe energia da Venezuela.
>> Privatização da Eletrobras indica luz no fim do túnel
>> Nelson Barbosa: “Não vendam a Eletrobras para gerar caixa rápido”
Valente está na ilha, quer dizer, na empresa, desde 1989, onde atua como engenheiro de telecomunicações. Aos 53 anos, seu salário-base em 2016 era de R$ 24.800. Mas os valores brutos recebidos por ele ficaram em R$ 60 mil mensais, em média, com um pico de R$ 124 mil em julho. Procurado por ÉPOCA, Valente desfez o sorriso. Disse que horas extras engordaram seu holerite, mas que não sabia os valores delas. Prometeu conferir. Por via das dúvidas, lamentou que o valor líquido que recebe seja bem menor. “Temos verbas que somadas, no meu caso, dão um bruto de R$ 50 mil. Com os descontos, recebo entre R$ 20 mil e R$ 25 mil”, disse. “Infelizmente, não é de longe igual ao bruto.” A “cara da riqueza” se fechou.
O setor elétrico em Roraima é um feudo do senador Romero Jucá, do PMDB, líder do governo no Senado e político de maior domínio em Roraima. Jucá foi padrinho das indicações da diretoria da Eletrobras Distribuição Roraima, o braço que compra a energia trazida pela Eletronorte da Venezuela e a distribui pelo estado. A Eletrobras tem, além da subestação, uma sede de dois andares em Boa Vista. A repartição, pequena, abriga 54 funcionários – a maioria lotada na estação que recebe a energia venezuelana. Quase um terço, ou 17 deles, conta com essas remunerações generosas.
A folha de pagamentos desse paraíso no país do desemprego é chocante. Com uma rotina de sete horas e meia de trabalho por dia, o engenheiro de manutenção elétrica Fernando Antonio Caldas recebeu R$ 194.800 em julho do ano passado. O valor inclui adicional de férias e participação nos lucros da empresa. Apesar das justificativas de que aquele mês fora “atípico”, o holerite de Caldas também não foi magro nos meses anteriores. Funcionário da subsidiária da Eletrobras desde 1989, seu salário-base é de R$ 29.200 mensais. Mas, com penduricalhos e horas extras, a média mensal vai a R$ 70.700. Filiado ao PMDB, partido do senador Jucá, Caldas atribui seu supersalário ao tempo de empresa e aos adicionais que recebeu. Ele diz que teve “muito serviço” no ano passado “no final de semana e de madrugada devido à obra de ampliação da subestação”.
Os funcionários atribuem as abundantes horas extras, que turbinam seus holerites, aos constantes apagões. Cada vez que a luz acaba, eles trabalham dobrado – e isso acontece com frequência. De acordo com a Eletrobras, Roraima tem em média três apagões por mês. As interrupções são frequentes porque o estado é o único isolado do Sistema Interligado Nacional: quase 90% da energia vem da Venezuela – o restante vem da produção de termelétricas. A maioria das 62 interrupções registradas entre 2015 e 2016 ocorreu na linha entre Venezuela e Brasil, que passa pela subestação dos supersalários.
Enquanto a maioria dos roraimenses vive no escuro, a conta bancária de uns poucos brilha: quanto mais apagões, maiores os vencimentos dos funcionários. “Imagine trabalhar na manutenção de um local que tem apagão quase todo dia”, diz Caldas. Deve ser terrível – especialmente no dia do pagamento. Faltaria menos energia e o país economizaria em salários com a construção de uma linha de transmissão para ligar Roraima ao Sistema Nacional. A ligação, que deveria ser concluída em 2014, ficou para 2024.
>> Até agosto, estatais investiram apenas 33% do total previsto para o ano
O operador de quadro de distribuição de energia Rafael Soares Cruz, filiado ao PCdoB, está na estatal desde 1986. Em 2016, seu salário-base era de R$ 13.500 mensais para uma rotina de seis horas diárias de trabalho. Já seria um achado. Mas ele ganhou mais que o dobro disso ao longo do ano. Em abril, quando recebeu também adicional de férias, foram R$ 70.100. Cruz diz que ele e os outros quatro operadores da subestação receberam no ano passado um passivo trabalhista, por desrespeito aos intervalos previstos na lei trabalhista.
A Eletrobras afirma, por meio de nota, que, quando um operador sai de férias, “há necessidade de sua substituição, exigindo realização de horas extras”. Cruz também atribuiu os altos valores ao conjunto de benefícios que recebe, como um adicional de 30% de periculosidade, um por tempo de serviço e um de 15% de penosidade, rubrica para quem tem funções consideradas desgastantes. “Com um pouquinho de hora extra, se você olhar, dá R$ 36 mil (o salário)”, diz o técnico. Ele admite que a maior parte de seu trabalho consiste em vigiar. “Na verdade, o operador só trabalha quando está faltando energia. No outro período, ele fica vigiando, não é?” Nos dados obtidos por ÉPOCA, Cruz aparece com mais de 100 horas extras trabalhadas em nove meses do ano. As horas extras fazem milagres. O operador de quadro de distribuição de energia Edvaldo Alves de Oliveira, com cargo de nível técnico, ganha mais que funcionários da própria Eletronorte com formação superior. No papel, seu salário-base em 2016 foi de R$ 12.900. Mas, com 149 horas extras, ele recebeu em média R$ 51.400 por mês no ano passado. Em setembro seu salário ficou em R$ 122.100, digno de um magistrado em meses bem-aventurados.
Não é surpresa alguma constatar quem paga pelo sistema ineficaz e pelos supersalários. A tarifa da conta de luz dos roraimenses é reajustada a percentuais muito acima da inflação. No começo de novembro, a tarifa de energia residencial subiu 35,3% – aumento autorizado pela Aneel, a agência que regula o setor.
Procurado, o senador Romero Jucá, por meio de sua assessoria de imprensa, não quis comentar sobre sua influência na estatal. A Eletrobras disse, por meio de nota, que “a prática salarial adotada pela Eletronorte cumpre rigorosamente a legislação trabalhista vigente e os Acordos Coletivos de Trabalho (ACTs) firmados com as entidades sindicais e devidamente homologados pelo Ministério do Trabalho e Emprego”. A estatal informou também que “o reajuste é um reconhecimento por parte da Aneel de que a empresa vinha trabalhando ‘no vermelho’. Além disso, a tornará mais atrativa para o processo de desestatização em andamento”.