domingo, 26 de novembro de 2017

O valor verdadeiro de Leonardo da Vinci

O valor verdadeiro de Leonardo da Vinci


O Salvator Mundi atribuído a Leonardo da Vinci é uma imagem de Jesus Cristo pintada a óleo sobre nogueira, medindo uns 65 por 45 centímetros. Foi redescoberta em 2005, restaurada em 2007 e, dias atrás, vendida num leilão em Nova York por US$ 450,3 milhões – mais que o valor de mercado de metade das empresas cotadas em Bolsas naquela cidade. Natural que a venda despertasse perplexidade. O que leva um quadro renascentista, uma obra menor de autoria ainda controversa, a valer mais que uma distribuidora de energia como a Eletropaulo ou que uma gigante imobiliária como a Cyrella? Especulação é a primeira palavra que vem à mente. O mercado de arte está aquecido. Só nos seis primeiros meses de 2017 (antes, portanto, do Salvator Mundi), as principais casas de leilão fecharam negócios de US$ 5,7 bilhões, 17% a mais que em 2016, segundo a consultoria Deloitte. Para aproveitar o momento, a leiloeira Christie’s montou uma operação de marketing colossal, em que a relíquia foi exibida como a “Mona Lisa masculina” em três continentes. Menosprezou a celeuma que cerca a autoria e pôs o nome de Leonardo, artista que viveu entre 1452 e 1519, num leilão de arte moderna e contemporânea, em que é comum os lances subirem à estratosfera. Talvez a explicação para o preço exorbitante seja até banal. Há 226 mil pessoas no planeta com capital suficiente para investir nesse tipo de arte. Fora milhares de páginas de desenhos e cadernos de anotações, Leonardo deixou suas pinceladas em não mais de 20 pinturas. Da mão dele apenas, há certeza sobre 12. Nenhuma à venda. Quando uma única entra no mercado, impulsionada pelo marketing, a lei mais básica da economia – nenhuma oferta; altíssima demanda – se encarrega de levar o preço às alturas.



O que nenhuma lei econômica explica é o próprio Leonardo, maior gênio na história da humanidade. “O mundo produziu outros pensadores mais profundos ou lógicos, e muitos mais práticos, mas nenhum tão criativo em tantos campos diferentes”, escreve Walter Isaacson na recém-lançada biografia Leonardo da Vinci. “Sua curiosidade o impeliu a tornar-se uma daquelas pessoas que tentaram saber tudo o que havia a saber sobre tudo o que poderia ser sabido.” Filho ilegítimo, gay, canhoto, vegetariano, incapaz de levar projetos ao fim, Leonardo foi a quintessência do homem renascentista. Criado em Florença, sabia, nas palavras de Isaacson, “que a arte era ciência, e que a ciência era arte”. Dissecou dezenas de cadáveres para desenhar um atlas anatômico que jamais publicou. Mediu o corpo humano de todas as formas possíveis, representadas no Homem Vitruviano e em milhares de desenhos. De sua análise do coração derivaram descobertas confirmadas só nos anos 1960. Do estudo dos músculos da face, o sorriso da Mona Lisa.



Livro da semana | Leonardo da Vinci (Foto: Divulgação )


Seu conhecimento minucioso de óptica e perspectiva resultou nos efeitos espaciais da Última Ceia. Descobriu que o som se propagava em ondas e criou instrumentos musicais. Dos cenários que criava para espetáculos dramáticos, extraiu precursores de aviões, helicópteros e tanques de guerra. O voo dos pássaros (e dos homens) era uma de suas obsessões. Projetou obras de engenharia que jamais foram concluídas, como desvio de rios, canais e drenagem de pântanos. Os fósseis e a geologia com que negara a narrativa bíblica do dilúvio originaram detalhes em quadros como A virgem dos rochedos. Plantas, ar, água, animais, tudo era objeto de sua curiosidade inesgotável, tudo era alimento para sua incomparável imaginação visual. O rigor intelectual e a capacidade de rever conclusões diante dos fatos fizeram dele um precursor do método científico. Tinha mais talento para geometria que para números (tentou por décadas resolver a insolúvel quadratura do círculo). Fascinado pela água, concebeu o escafandro. No fim da vida, desenhava cenas do dilúvio, aquele que contestara, em que torvelinhos brotavam no mesmo traçado canhoto dos cachos de cabelos.



“O que faz de Leonardo um gênio, o que o distingue dos apenas extraordinariamente inteligentes, é a criatividade, a capacidade de aplicar a imaginação ao intelecto”, diz Isaacson. “Não podemos retratá-lo em linhas claras e definidas, nem devemos, como ele não gostaria de ter pintado a Mona Lisa assim.” Leonardo era humano. Brigava com os meio-irmãos, rompia com amantes, largava projetos, deixava quadros inacabados, livros sem ser publicados e obras apenas na imaginação. Seu objetivo era acumular conhecimento só por prazer pessoal. Não pelo sucesso, para estabelecer seu nome como sábio, nem para tomar parte no progresso da história. Entre os milhares de páginas de seus cadernos, deixou um recado premonitório sobre o leilão do Salvator Mundi, criticando aqueles “que não desejam nada além de riqueza material e são absolutamente desprovidos do desejo por sabedoria, o sustentáculo e a riqueza realmente confiável da mente”.

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