quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Conheça o aye-aye, um dos lêmures mais raros e estranhos de Madagascar

Conheça o aye-aye, um dos lêmures mais raros e estranhos de Madagascar

Um vulto escuro passa correndo por um galho horizontal, mas ninguém consegue acompanhar o bicho com a luz da lanterna. Tudo acontece em frações de segundos e, pelo visto, este será mais um lêmure noturno que não consigo fotografar em uma floresta de Madagascar.


Mas a voz de Raymond Nirina, fiel guia sempre presente nas minhas andanças em Andasibe, muda de tom. Excitado, ele declara que o animal é um aye-aye. “Tenho certeza, vi o focinho dele e seus pelos arrepiados. É muito raro vê-lo por aqui. Tivemos muita sorte”, afirma Raymond. Mas sorte de que? De ver uma sombra fugaz desaparecer na escuridão?


O aye-aye é rechaçado pelos malgaxes devido a seu aspecto bizarro (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

O maior lêmure noturno Daubentonia madagascariensis é considerado como um dos animais mais estranhos do panteão da biodiversidade malgaxe. Seu aspecto amedrontador, quase diabólico, faz com que a população local o considere como um mau presságio. Quem puder, vai tentar matá-lo.

Se para o comum dos malgaxes encontrar um aye-aye à noite pode representar o anúncio de uma desgraça, avistar esse primata na natureza é como ganhar na loteria para guias locais, naturalistas e visitantes. Em 16 visitas à Madagascar desde 1994, encontrei o aye-aye apenas duas vezes!


Devido à caça predatória e à perda de seu habitat, o número de aye-ayes diminuiu drasticamente no início do século passado e ele deixou de ser encontrado durante décadas. Redescoberto em 1957, hoje o aye-aye é protegido e considerado como ameaçado de extinção pelo Livro Vermelho da União Internacional para a Conservação da Natureza. 


O aye-aye usa seus dedos como estratégia de caça. Com o dedo médio, bem fino, ele bate de leve nos galhos para descobrir cavidades onde insetos e larvas podem ser encontrados. Uma vez identificado o esconderijo, ele perfura a madeira com os dentes frontais incisivos e seu dedo anular, mais longo do que os outros, serve para fisgar a fonte de proteína. Suas unhas curvas e afiadas, quase como garras, finalizam o serviço.  Com este comportamento, o aye-aye ocupa um nicho ecológico que, em outros lugares, é preenchido pelo pica-pau.


O quarto dedo do aye-aye é mais longo do que os outros e o primata utiliza-o para fisgar larvas que estão no interior dos galhos (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

Além das larvas de inseto que compõe grande parte de sua dieta – uma iguaria que provocou o desenvolvimento da espécie e de seu dedo longo para fisgar petiscos – o aye-aye alimenta-se com nozes e sementes de diversas plantas nativas. Sua adaptabilidade aos diferentes ecossistemas da Grande Ilha, até mesmo às florestas secundárias e aos campos cultivados, fez com que o primata passasse a se alimentar também de frutos domésticos como o coco, a manga e a lichia.


Para meu segundo encontro com o aye-aye, 20 anos depois do primeiro, o guia me confidencia, antes da trilha no interior da floresta, que ele usaria um truque para atrair o animal. Sabendo das preferências do pequeno primata pela polpa do coco, ele traz em suas mãos dois cocos verdes para oferecer aos bichos. “Existem alguns aye-ayes nessa floresta, mas eles somente aparecem se dermos algo de comer para eles”, diz Silvain.


Caminhamos até uma clareira do bosque. Silvain encaixa um dos cocos na forquilha de uma árvore e assegura que esteja bem preso. “Se estiver solto, o aye-aye pode levar seu tesouro de volta para a floresta”, afirma. “Agora é só esperar alguns minutos.”


Dito e feito. Logo um aye-aye aparece na escuridão, o que provoca alguns ruídos humanos de fascínio. O guia pede silêncio para que o animal não se assuste e não desista de seu jantar. Estou concentrado nas fotografias que pretendo realizar. Como não devo usar flash, o jeito é iluminar a cena com uma lanterna colocada na lateral, não atrapalhando o bicho. Ajusto o ISO da câmera a 6.400 e a velocidade a 1/15 de segundo. Faço alguns testes e dá certo.
 


O coco verde está no cardápio do aye-aye há milênios, bem antes da chegada dos humanos em Madagascar (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

O aye-aye adulto vai direto ao coco. Com seus dentes incisivos – que continuam a crescer durante toda a vida, como acontece com roedores – o primata consegue fazer rapidamente um buraco na casca amarelada. Ele arranca com força as fibras e chega na casca mais dura que envolve a polpa. Mais uma vez, ele precisa usar seus incisivos com vigor, enfiando o focinho coco adentro.


Quando o nariz rosado começa a sair molhado é sinal que ele chegou a seu destino. Depois de beber um pouco da água do coco, o aye-aye enfia seu longo dedo anular dentro do coco e vai arrancando a polpa como se fosse uma colherzinha. Dá trabalho, mas o animal parece estar contente e não se preocupa com o fato que humanos, primatas bem maiores do que ele, estejam assistindo à cena.


>> Mais posts do Viajologia


Um outro aye-aye mais jovem entra em cena. Silvain aproveita a oportunidade para oferecer um segundo coco, este de casca esverdeada. Mas o novato sabe que ele não tem prioridade. Quando vê o segundo coco em outra forquilha, o aye-aye adulto desiste do primeiro e decide começar o árduo trabalho de fazer o buraco no novo fruto.  O aye-aye mais jovem aproveita para se alimentar das sobras do coco aberto.


Trinta e cinco minutos e 300 cliques depois o espetáculo chega ao fim. Os animais comeram o suficiente e agora é nossa vez de jantar. Mesmo se Silvain precisou usar uma artimanha para atrair os aye-ayes, volto ao hotel contente por ter visto e fotografado mais uma espécie de lêmure na natureza.