sábado, 18 de novembro de 2017

A guinada social-democrata de Sebastián Piñera, favorito nas eleições no Chile

A guinada social-democrata de Sebastián Piñera, favorito nas eleições no Chile


Estudantes durante protesto por melhorias na educação (Foto: Rodrigo Garrido/REUTERS)


Julio Isamit nasceu há 28 anos em uma família de classe média no município de San Bernardo, na periferia de Santiago, a capital do Chile. Seu pai é comerciante e sua mãe dona de casa. Ele estudou até os 12 anos em uma pequena escola particular subsidiada pelo Estado. Passou então na difícil seleção para o Instituto Nacional, um colégio público de elite que abriu caminho para que ele entrasse em uma boa universidade, a Universidade Católica do Chile, onde se formou em Direito. “Foi uma mudança de vida”, diz Isamit. “Meus pais com muito esforço conseguiram fazer com que seus filhos fossem os primeiros a fazer curso superior na família.”



Em 2006, Isamit foi um dos líderes da Revolução dos Pinguins, um levante de alunos do ensino médio pelo direito à educação superior, chamado assim por causa do uniforme dos colégios públicos: camisa branca, gravata, paletó, calça ou saia pretos. Num país em que todas as universidades públicas cobram mensalidade, o tema do acesso ao ensino superior continua, 11 anos depois, no topo da agenda política – e Isamit será candidato a uma cadeira na Câmara dos Deputados na eleição do domingo, dia 20, que escolherá o novo Parlamento chileno e deverá definir os dois candidatos presidenciais que disputarão o segundo turno, em 17 de dezembro.



"Educação superior gratuita para todos é injusto"

Julio Isamit



Isamit é candidato pelo partido de centro-direita Republicanos, que apoia o candidato favorito à Presidência, o bilionário Sebastián Piñera, que já governou o Chile entre 2010 e 2014. Na contramão de outros líderes pinguins, que, em geral, defendem educação gratuita para todos, ele critica essa bandeira. “Educação superior gratuita para todos é injusto, porque os mais ricos fazem os cursos mais caros. Ela aumentaria também o custo da educação, desviando recursos de outras áreas importantes, como saúde”, diz. Isamit participou da elaboração do programa educacional de Piñera e defende as propostas de seu candidato: bolsas integrais para os 50% dos estudantes mais pobres; a ampliação do crédito estudantil para quem tem renda acima da média nacional e mesmo assim não consegue arcar com as salgadas mensalidades; e alívio na cobrança da dívida dos futuros profissionais – que não poderiam comprometer além de 10% dos salários.



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JULIO ISAMIT,28 ANOS (Foto: HUGO INFANTE/POLARIS/ÉPOCA)


A trajetória de Isamit, que fez o ensino médio numa escola pública e depois ingressou numa universidade privada, é um contraponto biográfico a outros ex-líderes estudantis que apoiam nesta eleição o principal adversário de Piñera: o senador socialista Alejandro Guillier, o candidato da presidente Michelle Bachelet. A mais famosa desses “pinguins” é a deputada comunista Camila Vallejo, de 29 anos, candidata à reeleição. Como é comum no Brasil, Vallejo, antes de cursar geografia na Universidade do Chile, a mais importante do país e pública, estudou num colégio particular, de classe média alta de Santiago.



A história de Isamit dá outros trunfos ao candidato de centro-direita. Permite a ele defender com exemplos sua tese de que é melhor dirigir os recursos da educação para melhorar o ensino público básico, gratuito, em vez de deixar de cobrar mensalidades no ensino superior de famílias que podem pagar por elas. E fornece uma boa ilustração da guinada empreendida por Piñera nessa sua segunda tentativa de chegar ao Palácio de La Moneda, a sede do Executivo chileno. Em seu primeiro mandato presidencial, Piñera seguiu uma agenda liberal ortodoxa até ser atingido por dois grandes abalos. O primeiro foi o grande terremoto de 2010, que o forçou a aumentar os gastos públicos. As manifestações estudantis de 2011, nas quais Vallejo se destacou, representaram um segundo terremoto para Piñera. A dura repressão dos carabineiros (a polícia militar uniformizada do Chile) desgastou seu governo.



Agora, para enfrentar uma esquerda dividida e enfraquecida, Piñera adotou uma plataforma com tintas mais sociais, que o colocam no centro do espectro político. “A plataforma de Piñera é social-­democrata”, diz o sociólogo Eugenio Tironi, sócio de uma consultoria para grandes empresas de Santiago. “Piñera ainda é pró-mercado e gestão privada, mas agora promete ampliar a rede de proteção social para os setores médios, em vez de focalizá-la só nos pobres e deixar que a classe média resolva sua vida no mercado.” Segundo Tironi, Piñera tenta se afastar dos “dogmas dos Chicago Boys”, como ficou conhecida a corrente de economistas ultraliberais que dominou o governo do ditador Augusto Pinochet entre 1973 e 1990 e deu a largada à trajetória seguida pelo Chile, nas últimas décadas, de sucesso ímpar na América do Sul.



Após o fim da ditadura de Pinochet, a Concertación, a coalizão entre o Partido Socialista e a Democracia Cristã que passou a governar o país, manteve os pressupostos de responsabilidade fiscal e ambiente favorável à iniciativa privada herdados da era pinochetista. O país passou por um notável processo de modernização de suas leis trabalhistas e previdenciárias, fez acordos de livre-comércio com todo o mundo, se tornou competitivo e ergueu um sofisticado complexo industrial, que agregou valor a seus recursos naturais, como cobre, pescado e produtos agrícolas e industriais. Pelo critério de poder de compra, a renda per capita do Chile é a mais alta da América do Sul – e seus estudantes aparecem 20 posições à frente dos brasileiros no ranking de 2015 do Pisa, o programa internacional de avaliação de alunos.



Orielle Bonilla,21 anos (Foto: HUGO INFANTE/POLARIS/ÉPOCA)



"Todos os meses, vou ao Dicom (Serasa chileno) levar o comprovante de pagamento atrasado da faculdade"


Orielle Bonilla



Na esteira do sucesso econômico, outras tensões, porém, surgiram. A discussão sobre o financiamento do ensino superior é um exemplo dos dilemas atuais do Chile, que se estendem a outros temas, como cobrança de impostos, leis trabalhistas, cobertura previdenciária e de saúde. O modelo atual de ensino superior cria obstáculos à classe média. O curso de Direito na Universidade do Chile custa 360 mil pesos chilenos (US$ 600 ou cerca de R$ 2 mil) por mês. O teto da renda familiar para um estudante pleitear uma bolsa integral do governo é 168 mil pesos chilenos (US$ 280 ou R$ 924) por pessoa. Ou seja, para bancar os estudos de um filho numa universidade pública, uma família formada por um casal e dois filhos, com uma renda de US$ 1.200 (cerca de R$ 4 mil), tem de arcar com uma mensalidade que representa metade do que recebe por mês.



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Como em todos os lugares, o curso mais caro no Chile é o de medicina. Na falta de universidades gratuitas, tornar-­se médico é especialmente difícil para a classe média chilena, que não se encaixa nos critérios das bolsas do governo. Mas o financiamento da educação superior mesmo em cursos mais baratos é uma questão crítica para muitas famílias. Orielle Bonilla está no 3º ano de contabilidade e auditoria pública na Universidade Tecnológica Metropolitana (Utem), também pública. Ela tem uma rotina: “Todos os meses, vou ao Dicom (espécie de Serasa chileno) levar o comprovante de pagamento atrasado da faculdade”. Aos 21 anos, seu nome já está sujo na praça. Seu pai, um engenheiro comercial, ganha 1 milhão de pesos (US$ 1.666 ou R$ 5.500) por mês. A mensalidade de 350 mil pesos absorve um terço da renda familiar. Orielle tem dois irmãos mais novos, ainda no colégio, cujas mensalidades somam outros 150 mil pesos. Com 200 mil pesos por pessoa, sua renda familiar está pouco acima do teto para ela se qualificar a ganhar bolsa ou mesmo crédito com o aval do governo, que oferece juros  mais baixos. No 1º ano, ela teve direito a esse crédito subsidiado, porque seu pai ganhava menos. Mas, mesmo assim, ficou com uma dívida de 3 milhões de pesos: “Vi que isso também não é uma boa solução”.



Juan Cristobal Cantuarias,22 anos (Foto: HUGO INFANTE/POLARIS/ÉPOCA)


"O Estado tem de custear o ensino, não as famílias"

Juan Cristóbal Cantuarias



Orielle é militante do partido radical Revolução Democrática, favorável ao ensino gratuito, e vai votar na candidata de esquerda Beatriz Sánchez, que está em 3º lugar nas pesquisas. No início do ano, a estudante participou de manifestações estudantis,  reprimidas pelos carabineiros. A agitação dos “pinguins” continuou forte no segundo mandato presidencial de Bachelet, iniciado em março de 2014. Na manhã da terça-feira, dia14, ÉPOCA visitou a Escola de Direito da Universidade do Chile, ocupada pelos estudantes desde 16 de outubro em protesto contra prosaicas medidas aprovadas pela direção da faculdade, como mudança dos pesos nas notas, fim do intervalo para o almoço e aumento das vagas, de 400 para 600 por ano. “O Estado tem de custear o ensino, não as famílias”, diz Juan Cristóbal Cantuarias, de 22 anos, presidente do Centro Acadêmico, que interrompeu uma partida em uma mesa de pingue-pongue instalada no pátio da faculdade vazia para conversar com a reportagem. Militante do Partido Socialista, o líder estudantil tem a ideologia no sangue: Orlando Cantuarias, ministro da Habitação do presidente Salvador Allende, deposto pelos militares em 1973, era primo de sua mãe. Juan apoia Guillier, que promete ampliar as bolsas integrais para 80% dos alunos.



O governo da socialista Bachelet reconhece que o Estado não tem recursos para custear o ensino superior de todos. Mas, para conter a agitação estudantil, tomou medidas para ampliar as bolsas integrais de 40% para 60% dos alunos. Em contraponto às reformas liberais conduzidas por Pinochet, Bachelet fez um segundo mandato orientado para aumentar a participação do Estado em detrimento da iniciativa privada. Com uma reforma tributária, aumentou os impostos para os mais ricos e eliminou brechas que beneficiavam os investimentos, mas também a evasão fiscal. A reforma trabalhista devolveu o poder aos sindicatos e ampliou o espaço para os dissídios coletivos – o contrário do que foi feito agora no Brasil e na França.



Bachelet também atraiu o Partido Comunista para a aliança governista, que foi rebatizada de Concertación para Nova Maioria. “Isso produziu muitas tensões com a Democracia Cristã (DC), que está mais à direita”, diz o sociólogo Tironi. As discordâncias geraram um racha. A DC lançou uma candidata própria, Carolina Goic, para a disputa presidencial. Segundo o instituto de pesquisas Centro de Estudos Públicos (CEP), Goic amarga um quinto lugar na corrida eleitoral, com 3,9% das intenções de voto. Ela aparece atrás do candidato de esquerda Marco Enriquez, que tem 4,6%; de Beatriz Sánchez, a candidata da Frente Ampla que defende o ensino superior gratuito, com 8,5%; do socialista Guillier, com 20%.  Disparado na frente, aparece Piñera, com 44%. “A Nova Maioria terminou pulverizada com dois candidatos, destruída”, diz Tironi. Se vencer, ainda que no segundo turno, Piñera não pode esquecer de agradecer aos adversários. Eles deixaram todo o centro do campo aberto para ele ocupar.