>> Trecho de reportagem de ÉPOCA desta semana
Os moradores da pequena vila de casas no Horto acordaram durante a madrugada com gritos vindos da mata. Cada vez mais forte, o alarido era de homens tateando o breu daquela madrugada do sábado 23 de setembro. De repente, eles surgiram pelo quintal da meia dúzia de casas que faz fronteira com a Floresta da Tijuca. Os cães da vizinhança latiam. “Fiquei na cama sem me mexer. Cheguei a prender a respiração”, conta uma das moradoras, que, assim como os vizinhos, prefere ficar anônima. Eram cerca de 60 bandidos, uma parte encapuzada e com fuzis. Alguns pularam os muros das casas. Um deles quis roubar um carro, mas não conseguiu; tentou então levar uma bicicleta, a tranca impediu. Exauridos, repousaram as armas e descansaram no pequeno largo em frente às residências, que confere um ar de cidade do interior àquele pedaço do Rio de Janeiro. Pediram água aos moradores que se atreveram a ir à janela. Dispersaram antes da alvorada, alguns de volta pela floresta, uns poucos pelo asfalto na Zona Sul carioca.
Horas depois, devido a uma caçada policial com cães farejadores e drones, que terminou infrutífera, os moradores souberam que os invasores da noite eram traficantes em fuga da favela da Rocinha, longe dali. No dia anterior, uma operação da Polícia Militar e das Forças Armadas havia cercado a favela atrás de criminosos que protagonizaram um tiroteio pelo controle da venda de drogas no morro. Acuado, um grupo fugira pelo mato, numa caminhada de mais de três horas pelas trilhas sinuosas que saem do alto da Rocinha e cortam o Parque Nacional da Tijuca, passando por ruínas de fazendas do século XVIII, por cachoeiras frequentadas nos finais de semana e por acessos a bairros e morros das zonas Norte, Sul e Oeste da cidade. Antes isolados da violência pela floresta, os moradores do condomínio agora evitam ficar na rua até mais tarde e dormem preocupados. Nas três semanas seguintes ao episódio, o Disque Denúncia recebeu relatos de 15 invasões de casas nas imediações da favela, sempre por traficantes em fuga.
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O susto de ver bandidos armados saindo pelo mato é sinal de um processo que começou tempos atrás e, agora, explode na rotina dos cariocas. Há uma guerra em andamento entre as três facções criminosas que dominam o tráfico de drogas no Rio – Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA). Encastelados em morros, traficantes fortemente armados passaram a disputar territórios abertamente, como não faziam havia anos. Sentem-se à vontade para agir porque seu principal opositor, o estado, perdeu força. O governo do Rio está falido, com um déficit nas contas que supera os R$ 17 bilhões. A segurança pública está enfraquecida.
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A maior vítima desse processo é o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora instaladas nas favelas a partir de 2008. Até recentemente, a simples existência das UPPs desestimulava tomadas de território. O bando interessado teria de passar pela polícia, para depois enfrentar a facção adversária em becos e vielas. Mas, com a falta de dinheiro e o avançar da corrupção e da violência policial, as UPPs perderam força, confiança da população e, portanto, seu poder intimidatório e eficácia. Traficantes começaram a recuperar territórios que haviam perdido, a ponto de passarem a atacar as UPPs. O resultado nas ruas é que 119 policiais militares já foram mortos por bandidos neste ano, entre eles um coronel comandante do batalhão do Méier. Os traficantes demonstram uma força que não se via há tempos.
O estado reage de forma atabalhoada. A polícia voltou à velha prática de operações pontuais nos morros, que rendem poucas prisões e apreensões de pequeno efeito sobre as facções, mas provocam tiroteios constantes. Na segunda-feira, dia 13, o aplicativo chamado Onde Tem Tiroteio – sim, isso existe – registrava 15 pontos conflagrados pela cidade. Tiroteios em guerras matam combatentes; em áreas urbanas em que a maior parte da população tenta viver normalmente, fazem vítimas entre policiais e inocentes, como o bebê Arthur, que morreu atingido por um tiro, ainda na barriga da mãe. O medo dessas tragédias já deixou 162 mil alunos sem aula entre fevereiro e o dia 13 de novembro. Foram 174 dias letivos perdidos. As escolas localizadas em favelas antes pacificadas não abriram seus portões aos alunos pelo menos 200 vezes neste ano.
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O epicentro do conflito em questão é a Rocinha, que voltou a ser uma das comunidades mais perigosas da cidade. ÉPOCA teve acesso com exclusividade a um relatório do setor de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio que aponta as origens desse conflito, que remonta a 2014, e como os interessados se movimentam desde então. De acordo com investigações, que incluem interceptações telefônicas e de mensagens, o Comando Vermelho contingenciou R$ 1,5 milhão para bancar a invasão da favela, sob controle da ADA. A verba previa a compra de armas e munições, além da logística das tropas na frente de combate. A Rocinha, montanha de sobrados com 69 mil habitantes e um labirinto de becos estreitos, fétidos e cheios de ratos, é estratégica para os traficantes por ser próxima dos bairros valorizados da orla, onde estão os consumidores mais abastados. A polícia estima que cada ponto de venda de drogas na Rocinha renda, em média, R$ 90 mil por semana.